terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Aprender a Rezar na Era da Técnica com Gonçalo M. Tavares

Tenho amigos que desdenham por completo o trabalho de Gonçalo M. Tavares. Tenho outros, a larga maioria, que ainda não se deu ao trabalho de ler o homem. Acredito que a sua produção avassaladora assuste muita gente e provoque até para algum desdém face a um trabalho de escrita hercúleo em pouco mais de 5 anos. Eu próprio confesso que desconfiei do excesso, mas desde o início dei o benefício da dúvida, não só porque fazer tanto barulho por nada parecia-me inusitado, mas sobretudo porque a forma conceptual como Gonçalo M. Tavares aborda a sua obra deixou-me extremamente curioso.

Já andei pelos Bairros e por alguns contos e livros de apontamentos, onde encontrei frases e dizeres que com certeza um dia irão figurar em compilações de citações, mas sem nunca ficar saciado na medida que me importa. A leitura é profunda, sempre de um universalismo impressionante (idêntico ao que faz de Saramago um escritor português que facilmente chega ao mundo inteiro), mas parece-lhe faltar um fôlego de fundo, daqueles que nos afunda noites seguidas num livro.

É por isso que a série que mais me entusiasma literariamente em Gonçalo M. Tavares é o Reino – para os menos atentos, aquela série dos livros de capa negra editados pela Caminho e de onde saiu o livro mais aclamado do autor, “Jerusalém”. É nesta série, na minha opinião, que Gonçalo M. Tavares melhora explora o seu enorme potencial literário, com temas que nos tocam a todos e a todo o mundo – o hedonismo, a avareza, a vingança, a ambição, a maldade, a depravação, a loucura, a crueldade... - mas abordados de uma forma muito individualizada, que na maioria das vezes se concentra de forma obsessiva na personagem central do livro. Neste sentido são livros muitos kafkianos, que nos prendem sem sabermos muito bem porquê, mas simplesmente porque tem de ser.

A mais recente edição do Reino, “Aprender a Rezar na Era da Técnica”, continua a senda negra do Reino (não obriga à leitura dos 3 tomos anteriores, mas o conjunto simboliza algo maior). É a história de um homem desmesuradamente ambicioso que um dia decide mudar da medicina para a politica, disciplinas aqui assustadoramente similares. Um homem supostamente respeitado mas cuja vida privada esconde depravações profundas. Um homem que vive à sombra da herança emocional de um pai ditador, mas que precisamente por isso ele o ama ainda mais. Um homem que vê o mal que semeou virar-se contra si. Um homem que começa como acabou: mal. À partida o enredo não parece ter nada de extraordinário, mas somos impelidos, de forma sôfrega, a caminhar até ao fim, a viver a miséria daquele homem, a julgá-lo, a crucificá-lo, a sermos ele.

“Aprender a Rezar na Era da Técnica” oferece-nos uma leitura fácil (e isto não é uma critica), mas sobre temas profundamente reais e actuais, e uma escrita demolidoramente simples, mecânica até, no sentido em que tudo faz sentido e tem um sentido. Às vezes até demasiado sentido. Se calhar é por isso que sinto faltar-lhe alguma alma, se calhar a alma lusitana que estamos habituados a ler em Eça ou Camilo. Mas é precisamente esta falta de alma e excesso de conceptualização que torna a escrita de Gonçalo M. Tavares original e que a está a levar além fronteiras.

1 comentário:

ESF disse...

Eu confesso-me uma apreciadora dessa escrita limpa, curta, incisiva. Falta de alma? A mim não me parece... mas se calhar falta-me objectividade na análise, não sei.

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