segunda-feira, 30 de julho de 2007

Para a minha filha: “Charlie e a Fábrica de Chocolate” de Roald Dahl

Este ano, no meu aniversário, a minha irmã, o meu cunhado e a minha sobrinha tiveram uma ideia fantástica. Ofereceram-me o livro “Charlie e a Fábrica de Chocolate” de Roald Dahl, para eu ler à minha filhota que vai este ano para a 1ª classe. A paixão pelos livros já são um dos legados que lhe consegui transmitir nestes seus primeiros 5 anos de existência. Mas este livro tornou-se um marco porque foi o primeiro livro a sério (leia-se com mais letras que bonecos) que lemos os dois em conjunto. E que experiência...

Em primeiro lugar pelo livro em si, que sabe a chocolate do princípio ao fim, e por todo o imaginário infantil (e didáctico) que ele desperta e que tão bem foi retratado no filme de Tim Burton, que é quase 100% fiel ao livro. Viva os umpa-lumpas!

Em segundo lugar pelo ritual diário que estabelecemos: dois ou três capítulos antes de ir para a cama, lidos em voz alta e devidamente encenados - a maravilha que foi ver a minha filha a olhar para mim, encantada como ela costuma ficar quando está a olhar para um livro com bonecos.

Em terceiro pela capacidade visualizadora e pela memória que a minha filha revelou, cada vez mais sequiosa de aprender a ler por si própria e com uma imaginação cada vez mais fértil, que eu quero acreditar dever-se à saudável influência dos livros.

Por tudo isto, aconselho vivamente esta experiência a todos os pais com filhos em tenra idade. Porque nos faz sentir crianças. Porque nos aproxima deles. Porque é tão bom saborear as palavras em voz alta. Porque uma criança que gosta de livros é uma criança muito mais feliz. E eu só quero que a minha filha seja feliz.

Por tudo isto, obrigado Susana, Matilde e Carlos.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis


Depois d’Os Maias, viajei para Sul, mais propriamente para o Brasil, à procura de um contemporâneo do nosso Eça, o brasileiro Machado de Assis (talvez porque já andava para o ler há muito tempo, ou talvez porque tenha metade da família no Brasil neste momento), autor de outro grande clássico da literatura em língua portuguesa, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. E que viagem. Comecei há dois dias e já vou quase no fim.

Numa primeira apreciação, a distância que separa o humor de Eça do de Machado de Assis é muito curta, sobretudo no que aos amores, desamores e traições amorosas diz respeito. Mas o português brasileiro de Machado de Assis presta-se sem dúvida mais à comédia.

Pelo palavreado: “Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação"

Pela capacidade comunicativa: “Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem”.

Pelo ir directo ao assunto e sem papas na língua: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.

Tenho lido as memórias brasileiras do meu cunhado sobre a sua actual estadia no Brasil (ANAUEL) e dá realmente para perceber que aquele país transborda de humor. Mesmo quando pretende ser sério. É fantástico.

Seguir-se-ão outras apreciações das memórias de Brás Cubas brevemente. Se não acabar o livro já hoje... Tenho de descobrir mais autores brasileiros – uma ajudinha, vai?...

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Os Maias do meu contentamento


“Todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim.» E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.”

É impressionante como uma simples constatação da vida desiludida consegue resumir toda a genialidade do (provavelmente) maior romance da literatura portuguesa: “Os Maias” de Eça de Queiroz. Constatação que surge no final do livro, à laia de epílogo, depois de resolvidos os episódios da vida romântica vividos por Carlos da Maia e João da Ega.

(Re)ler os Maias foi uma experiência por que todos os portugueses deviam passar. São mais de 700 páginas que se lêem de um fôlego, com sofreguidão, mesmo que se saiba à partida como tudo vai acabar (mal?). É talvez o maior fresco sobre o Portugal novecentista, que nem por isso é assim tão diferente do Portugal de séculos anteriores e posteriores. É o Portugal do fado que nos afoga numa existência pequena e miserabilista, mas ao mesmo tempo com uma alegria e um humor imensos. Porque se há algo que os Maias reflectem é a nossa capacidade de escarnecer e maldizer de nós próprios, mas sempre a cantar. Ou então, a nossa capacidade de auto-crítica e ao mesmo tempo a nossa incapacidade de aceitar as criticas vindas do exterior.

Nos Maias está lá tudo: os pequenos poderes e as grandes amizades, os amores e os desamores, a comédia e o drama da vida quotidiana, arquétipos para todos os gostos. Um épico que se o nosso cinema não fosse também pequeno, já o teríamos em mega-produção e wide-screen. Mas provavelmente é melhor que os Maias não saiam do papel, porque ler o livro e visualizar aquele universo com a imaginação é o melhor filme que se pode ter.

Mas acima de tudo, nos Maias está a nossa língua tratada como tão bem ela merece ser tratada em papel. Estão palavras mágicas que se saboreiam a cada letra. Estão sequências que tornam sonhos em realidade (parece tão fácil...) e de que nas últimas semanas procurei dar conta aqui. Está o romance da nossa portugalidade.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Os Maias da Lisboa novecentista


“Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo pão que comemos!
Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, num gesto lento:
- Resta aquilo, que é genuíno...
E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas ressequidas e tisnadas pelo sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas eclesiásticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades de opa atulhando os adros, erva-doce juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada às esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o Castelo, sórdido e tarimbeiro, donde outrora, ao som do sino tocado em fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por ele, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brasões nas paredes rachadas, onde, entre a maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, caquéctica e caturra, a velha Lisboa fidalga!”

Os Maias positivistas


“Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente! Nós fizémos como vocês, os literatos. Antigamente a literatura era a imaginação, a fantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiência, o facto positivo, o documento. Pois cá a política em Portugal também se lançou na corrente realista No tempo da Regeneração e dos Históricos, a política era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrório...Nós mudámos tudo isso. Hoje é o facto positivo – o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!”

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Os Maias da política


“A política! Isso tornara-se moralmente e fisicamente nojento, desde que o negócio atacara o constitucionalismo como uma filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por trás lhes puxavam pelos cordéis. Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Aí é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinária, que em país algum sucedia, nem na Roménia, nem na Bulgária! Os três ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem for, largamente, excluem a maioria dos políticos. E porquê? Porque as «senhoras têm nojo»!”

Os Maias na boca do mundo mediático


“«Ora viva , sô Maia! Então já não se vai ao consultório, nem se vêem os doentes do bairro, sô janota? – Esta piada era botada no Chiado, à porta da Havanesa, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por aí de catita; e o pai Paulino que tem olho e que passava nessa ocasião ouviu a seguinte cornetada: - É que o sô Maia acha que é mais quente viver nas fraldas de uma brasileira casada, que nem é brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs casa, aí para o lado dos Olivais, para estar ao fresco! Sempre os há neste mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gja alhe quer não são os lindos olhos, são, são as lindas louras... O simplório, que bate aí pilecas bifes, que nem que fosse o marquês, o verdadeiro marquês, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora de chique, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente estoirar o bandulho a rir !) no fim descobre-se que a tipa era uma cocotte safada , que trouxe para aí um braYsileiro já farto dela para a passar cá aos belos lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o sô Maia só apanhou os restos de outro, porque a tipa, já antes de ele se enfeitar, tinha pandegado à larga, aí para a Rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que se safou também, porque cá como nós só aprecia a bela espanhola. Mas não obsta a que o sô Maia seja traste! – Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque o Fdiabo cá tem a sua Corneta preparada para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, sô Maia!»”

domingo, 22 de julho de 2007

Os Maias arebatadores


“Carlos via-a assim tremer, via-a toda pálida... E nem a escutara, nem a compreendera. Sentia apenas, num deslumbramento, que o amor comprimido até aí no seu coração irrompera por fim, triunfante, e embatendo no coração dela, através do aparente mármore do seu peito, fizera de lá ressaltar uma chama igual... Só via que ela tremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade forte de um acto de tomada de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhe ora uma, ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:
- Meu amor! Meu amor! Meu amor!”

(...)

Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para ali caída e abandonada, parecia já uma pobre criatura arremessada para fora de todo o lar, sózinha a um canto, entre a inclemência do mundo. Então respeitos humanos, orgulho, dignidade doméstica, tudo nele foi levado como por um grande vento de piedade, Viu só, ofuscando todas as fragilidades, a sua beleza, a sua dor, a sua alma ublimemente amante. Um delírio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se à sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos:
- Maria, queres casar comigo?”

sábado, 21 de julho de 2007

Os Maias da nossa miséria


“A única coisa a fazer em Portugal (...) é plantar legumes, enquanto que não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demitamo-nos logo voluntàriamente da nossa posição de país para que não temos elementos, passemos a ser uma fértil e estúpida província espanhola e plantemos mais legumes!
O velho escutava com melancolia estas palavras do neto, em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inércia. Terminou por dizer:
- Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!”

(...)

“Clamamos por aí, em botequins e livros, «que o país é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... Vossa Excelência não conhece este país, minha senhora. É admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão está toda em quem a trabalha. Até aqui, a cera tem estado em mãos brutas, banais, toscas, reles rotineiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...”

Os Maias irónicos


“Se o vício se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embelezavam, que o idealizavam... Que escrúpulo pode ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençóis conjugais, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrofes de oiro?”

domingo, 15 de julho de 2007

Os Maias apaixonados

“Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os lábios nos lábios dela. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; - e ela pendia para trás a cabeça, branca como uma cera, com as pálpebras docemente cerradas. Le deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sofá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sofá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o senhor conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, num rumor de saias amarrotadas.”

Esta é para ti Carla. Podemos ter os nossos arrufos, mas ainda suspiro por ti...

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Os Maias caricaturais

“Uma das espanholas era um mulherão trigueiro, com sinais de bexigas na cara; a outra, muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que o pó-de-arroz não disfarçava. Ambas vestiam de cetim preto e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janela, pareciam mais gastas, mais moles, ainda pegajosas da lentura morna dos colchões, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo à súcia havia outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja.”

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Os Maias atraiçoados


“Estava furioso. Nesse momento odiava Raquel – não perdoando ao seu ídolo ter-se deixado desfazer à paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da Índia, com uma cabeça de galgo por castão. E aquilo zurzira as carnes que ele tinha apertado com paixão!. Aquilo pusera vergões roxos onde os seus lábios tinham avivado sinais cor-de-rosa! E tinham «feito as pazes». E assim terminava, reles e chinfrim, o melhor romance da sua vida! Preferiria sabê-la morta, a sabê-la espancada. Mas não! Levava a sova, deitava-se depois com o marido, e ele mesmo, decerto arrependido, chamado-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as aplicações de arnica! Aquilo acabava em arnica!”.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Os Maias bucólicos

“Houve outra vez um silêncio no terraço. Dentro, a partida continuava. Para lá da sombra do toldo, agora, o sol ia aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca, numa refracção de ouro claro em que palpitavam as asas das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros em flor: em baixo, o jardim verdejava, imóvel na luz, sem um bulir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho líquido da água do tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o amarelo das rosas, pela carnação das últimas camélias... O bocado de rio que se avistava entre os prédiosera azul-ferrete como o céu: e entre rio e céu, o monte punha uma grossa barra verde-escura, quase negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, em duas casinhas alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique de um sino.”

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Episodios da Vida de um Leitor: Os Maias


Há dois anos tive o prazer de fazer um curso de escrita narrativa leccionado por Mário de Carvalho. Naturalmente eram sete cães a um osso para ter uma oportunidade de ouvir e aprender com este escritor que muito admiro. Na entrevista de triagem, que me orgulho de ter passado com distinção, entre outras questões, o Mário de Carvalho perguntou-me se eu já tinha relido os Maias, desde que a isso fui obrigado na escola. Confessei que não, mas se um escritor daquele gabarito me alerta para a importância de o fazer (sou um bocado influenciável por quem admiro, confesso...), passei a assumir a tarefa de reler os Maias como uma das etapas fundamentais da minha quimera pela literatura portuguesa.

É por isso com orgulho que anuncio que aos 35 anos decidi finalmente reler os Maias do nosso Eça. Com orgulho, com arrependimento (porque devia era tê-lo feito mais cedo) e sobretudo com enorme prazer, pois em dois dias que levo de Maias, já marcharam para cima de 200 páginas (e isto só ao serão porque de dia tenho de labutar). Até dou por mim a pensar que só me apetece que chegue o conforto da noite para eu me aconchegar ao Eça e aos Maias. E ao sábio Afonso, ao herói da fita Carlos, ao Pedro (o fraco!...) e à Maria Monforte (a ordinária!...), ao Ega, ao Dâmaso, ao Alencar, ao Vilaça, à Gouvarinho, aos Cohen (ainda não cheguei à Maria Eduarda, mas pelo andar das páginas, pouco faltará)... E a Santa Olávia e ao Ramalhete. E aos adjectivos mil, aos enredos infindáveis e aos ambientes cinematográficos. E ao Portugal de oitocentos em pleno estertor monárquico que Eça retrata e descreve com uma elegância, humor e rigor únicos, e que nos faz recordar que Portugal continua a ser uma “choldra ignóbil” incapaz de se regenerar.

Nos próximos dias, sempre que a oportunidade me surgir, hei-de deixar aqui umas passagens deste épico maior da nossa língua que se deve ler por gozo (e que gozo...) e nunca por obrigação. Apesar de cada palavra que me entra pelos olhos me comunique que deve ser uma obrigação de todos os portugueses sãos de espírito ler os episódios da vida romântica dos Maias de fio a pavio.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Ao Kamba Pepetela


Acabei de ler o meu primeiro Pepetela e comecei pelo fim com “Predadores”, que é um ponto de partida tão bom como qualquer outro. Fiquei desde logo encantado com tudo aquilo que aprendi e percebi sobre o maravilhoso linguajar angolanês e sobre a história recente de Angola, desde a descolonização portuguesa até hoje, num romance intenso e empolgante, que se lê de um fôlego.

Um livro onde se subentende o passado de luta pelo MPLA de Pepetela e a mágoa que o marca a cedência de muitos dos seus companheiros de independência às “gasosas” e ao novo-riquismo. Um livro que sublinha o contraponto entre os angolanos que lutam pelo futuro de Angola e os angolanos que lutam (a qualquer custo) pelo seu próprio futuro, com avultadas contas fora do país e sem qualquer tipo de empenho na melhoria cada vez mais urgente da qualidade de vida de um país que cresce a uma velocidade imensa, mas só para alguns (muito poucos) e à custa da miséria de tantos.

Um livro com uma forte crítica ao aburguesamento dos angolanos que trabalham para o Estado e que sobem na vida à conta das benesses ilícitas que isso lhes trouxe, com a brilhante personagem principal de Vladimiro Caposso, do Catete, no epicentro. Vladimiro porque quando era jovem ficava bem adoptar nomes revolucionários. Do Catete porque era mais fácil subir se se assumisse como local de nascimento a terra do chefe revolucionário. Uma triste farsa perante a qual não se consegue deixar de sorrir, porque apesar da tristeza, a escrita de Pepetela é de uma alegria contagiante.

Um livro onde fica patente o ódio a todos estrangeiros por parte destes novos ricos, uma falsa desculpa para quem não soube enriquecer a si próprio ao mesmo tempo que enriquecia Angola. Um livro onde é exposta às claras a incapacidade destes “revolucionários” angolanos de governar um país com tanto de riqueza como de guerra. Deve ser precisamente por isso que me veio constantemente à memória a fábula de George Orwell sobre o triunfo dos porcos que expulsaram os humanos da quinta, para no fim acabarem como eles. Pelos visto, o caciquismo foi mesmo uma das principais heranças deixadas pelos portugueses em Angola.

Um livro que começa ainda no tempo da guerra colonial e da esperança por um mundo melhor, e acaba no início de 2005, após (apenas) três natais consecutivos de paz que justificam plenamente a interrogação que Pepetela deixa no ar: até quando?

Para terminar, obrigado a Pepetela por me dar a ler este fresco sobre a Angola pós-Portugal, pela simpatia com que se deixou abordar por mim na Feira do Livro deste ano e pelo autógrafo cordial que me concedeu, com um afável sorriso de quem nem parece que viveu (e vive) no país que o escolheu para nascer. E uma nota final para o meu primo Álvaro, que foi ganhar o teu “kumbú” para Angola, com melhores intentos do que os estrangeiros retratados nestes “Predadores” - tens de ler este livro.

Pequena nota biográfica:

Pepetela nasceu em Benguela, Angola, em 1941. Licenciado em Sociologia, em Argel, escritor, guerrilheiro, político e representante do MPLA, é actualmente professor na Universidade Agostinho Neto, em Angola, e membro da Comissão Directiva da União de Escritores Angolanos. A atribuição do Prémio Camões, em 1997, confirmou o seu lugar de destaque na literatura lusófona.

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