quarta-feira, 14 de março de 2007

Gosto do O’Neill

Gosto deste arquétipo de escritor lisboeta, intelectual e popular ao mesmo tempo, como o foram outros grandes escritores/poetas alfacinhas: José Cardoso Pires, Nuno Bragança ou José Gomes Ferreira. A arte que vem do quotidiano. Das tascas. Das pessoas. Das ruas.

Gosto da forma como ele (des)alinhou com todas as convenções poético-literárias. Foi surrealista e não foi. Foi hiper-realista e não foi. Foi, no fundo, o que lhe deu na real gana. Ou então, nas palavras do próprio: “o meu estilo é não ter estilo”. Ou então nas palavras de uma das suas várias ex-mulheres: “não se pode prender um espírito livre”.

Gosto da sua carreira na publicidade/comunicação, por onde também eu já andei e vou andando. Foi ele que inventou o famoso “Há mar e mar. Há ir e voltar”, que podia ter sido, mas não foi por rejeição do cliente, “Este Verão viva desafogado” (gosto mais).

Gosto das semelhanças com Vinicius de Moraes. Vi o documentário sobre Vinicius enquanto lia a biografia do O’Neill e as semelhanças são impressionantes: almas gémeas, as mulheres, os copos, o espírito, a poesia, o anedótico, a língua portuguesa.

Gosto da forma como ele reinventava uma língua já de si tão inventiva. Quem cria expressões como “rechinchante sardinha” ou “os olhos pestanítidos” não é gago, é brilhante. É o poeta dos três C’s - cama, copos e conversa -, enclausurado no país dos três F’s: Fátima, futebol e fado.

Gostei de ler “Alexandre O`Neill - Uma biografia literária”, escrita por Maria Antónia Oliveira. De saber um pouco (muito) mais sobre um dos maiores símbolos do poder de comunicar em português. Do esforço hercúleo da autora em encontrar fontes dispersas sobre uma personalidade já de sei tão dispersa. Da recolha exaustiva de depoimentos (só estranhei a ausência de testemunho de Teresa Patrício Gouveia). Do itinerário vivencial proposto por Maria Antónia Oliveira, que nos permite correr as ruas do Príncipe Real à Praça das Flores e ao Chiado e descobrir as casas onde O’Neill morou, os alfarrabistas que desempoeirou e as tascas onde se atascou - era um enfardador incurável, apesar de ser teso que nem um carapau, física e monetariamente.

Só não gostei da tendência da autora em intervir demasiado, nomeadamente quando se dirige ao leitor, mas principalmente quando exerce juízos de valor sobre os problemas amorosos do poeta e a inconstância das suas relações com o sexo oposto. Mais ainda quando a autora se propôs a fazer uma biografia literária.

Por tudo isto e mais alguma coisa, gosto cada vez mais do género biográfico e gosto do O’Neill. Quanto mais não seja por isto:


E de novo, Lisboa…


E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

Alexandre O´Neill
(Poesias Completas 1951/1981)

2 comentários:

Mariantónia Oliveira disse...

Caro C.D.:

Fico contente que tenha apreciado a minha biografia do Alexandre O'Neill.
Queria contudo esclarecer um conceito e explaicar algumas reservas que fez ao meu livro.
O termo "biografia literária" é bastante antigo e utilizado tão-só para designar as biografias cujo objevto é um escritor. Não pretende o adjectivo valorizar literariamente a própria biografia, a forma, a escrita, ou coisa que o valha. É uma designação de um subgénero dentro do género maior que é a biografia, e que põe questões técnicas e teóricas muito específicas - como se calcula, é diferente escrever a vida de um homem de acção ou a de um homem de palavras. É alguém que escreve a escrever sobre outro que escreve. Mas não me alongo por aqui.
Quanto ao narrador intrometido que escolhi: pode ser, de facto irritante. O leitor quer é história, factos, e aborrece-se com divagações, preferindo que não lhe sejam mostrados os bastidores da biografia. Nas biografias clássicas, é suposto o autor apagar-se, não dizer 'eu', não dar opiniões. O género biografia, aliás, parece nunca ter autor, ser de geração espontânea. Nunca sabemos quem é o autor daquela magnífica biografia do Baudelaire que acabámos de ler, e se queremos ir comprá-la à livraria, vamos à letra B, não à do nome do autor.
Eu tive o privilégio de obter as palavras de uma série de pessoas que se dispuseram a falar do biografado. Não quis subsumir no meu o discurso de pessoas cujas palavras eram, elas próprias, muito reveladoras de uma certa época – e que eram, afinal, também personagens da biografia.
Maas, desde o início, pretendi uma narrativa coesa, com um narrador forte e intrometido, que conduzisse todas aquelas vozes que me vinham do passado.
Não vamos ser ingénuos a ponto de falar de objectividade em biografia. Uma biografia é a história de um encontro de duas subjectividades passada para a escrita: a do biografado e a do biógrafo. Por isso, eu quis dizer 'eu'. E interpelei o leitor para que, entre outras coisas, ele se fosse lembrando de que uma biografia é um livro, e não a vida real.
Mariantónia Oliveira

Covas Dauro disse...

Cara Maria Antónia Oliveira

Eu não advogo biografias clássicas nem modernas, nem sequer tenho conhecimento para avaliar da técnica biográfica. É um género que me agrada, com todas as variantes que possa ter. E neste caso não quero de modo nenhum retirar o mérito que a Maria Antónia tem pelo excelente trabalho que desenvolveu e pelo conhecimento que tem sobre Alexandre O'Neill que, bem sei, não vem desta biografia mas de um passado de trabalho editorial à volta do poeta.

E nem sequer critico o factor do autor, neste caso a Maria Antónia se dirigir ao leitor, técnica que é usada tanto pelos clássicos Camilo e Eça, como pelos mais contemporâneos Saramago e Mário de Carvalho, todos eles autores que prezo bastante.
Como leitor incomodou-me, confesso, o excesso de utilização (às vezes até repetitivo) da referida técnica, mas o que me incomodou mesmo foi o juízo de valor excessivo que faz no livro sobre as opções e complicações amorosas (machistas e incongruentes de facto) de O'Neill. Sobretudo porque acho que isso nada tem a ver com o trabalho poético que desenvolveu e que, penso eu, era o tema central do seu livro. Uma adenda: o Céline como pessoa era fascista e repugnante, mas isso não o impediu de escrever um dos mais brilhantes livros da história da literatura universal: "Viagem ao Fim da Noite".

Isto tudo para lhe agradecer o facto de estar atenta àquilo que têm escrito sobre o seu livro, ao ponto de ter descoberto este humilde blog de um humilde leitor que da leitura só procura mesmo a emoção que ela transmite. E de se ter dado ao trabalho de responder ao meu texto que não foi escrito a pensar numa possível réplica (mas ainda bem que replicou). E também para lhe agradecer me ter aproximado ainda mais do O'Neill, de quem, volto a frisar (correndo o risco de ser repetitivo) gosto e muito. Paixão que também se nota em si.

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