domingo, 18 de março de 2007

“Carta aos Párocos” de Mário de Carvalho


Este blog foi criado com o intuito de digitalizar as minhas preferências literárias à medida que vou lendo os milhares de caracteres que surgem perante os meus olhos óculizados. Sem alimentar polémicas, nem entrar em desagravos perante temas e atitudes que me possam surgir como reprováveis. Mas a vantagem desta coisa dos blogs é a liberdade que eles nos dão de exprimir e publicitar aquilo que simplesmente nos apetece. Ora uma das coisas que os meus olhos gostam de ler é o Jornal de Letras (provavelmente eu e mais meia dúzia de gatos pingados que precisam de saber o que se vai passando no mundo das letras...), publicação de que até sou assinante. E o mais recente exemplar dado à estampa (nº 951 – 14 Março) tem vários artigos interessantes, mas o que mais me saltou à vista (os olhos outra vez, sempre os olhos...) foi a “Carta aos Párocos” escrita por Mário de Carvalho. Uma carta onde Mário de Carvalho demonstra mais uma vez porque é que é um dos mais inspirados escritores portugueses da nossa contemporaneidade (leiam se faz favor “A Paixão do Conde de Fróis”, “Era Bom que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto” ou “Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina”), mas onde também demonstra porque é que os senhores párocos da pátria lusitana merecem ser criticados pelo atraso de vida que (ainda hoje em dia!!!) conseguem advogar para Portugal e para o mundo. E aqui entra aquilo que eu não queria fazer à partida neste blog, mas que, por culpa do Mário de Carvalho (obrigado!) não resisti a fazer. Confesso que também sou anti-clerical e quando esse anti-clericalismo é tão eloquentemente exposto, e ainda mais por um escritor que admiro, não resisto a dar-lhe voz aqui no TODOS OS LIVROS. Se puderem comprem o JL (mesmo por quem tem a mania que aquilo é só para «intelectuais»), porque vale a pena alimentar quem luta contra a iliteracia. Se mesmo assim não ficarem convencidos, aqui vai o texto do artigo, com um louvor a Mário de Carvalho:

“Caros senhores párocos,

Antes de falarmos de vossas paternidades, permitam-me uma fugaz divagação sobre taxistas. Ainda não há muito, a propósito duns atropelos algo indecorosos que ocorriam no aeroporto de Lisboa, não poucos cidadãos manifestaram nos jornais uma forte desconfiança na classe. De imediato um jovem veio responder com indignação que era filho de taxista e que o pai, numa vida inteira de trabalho, sempre procedera como homem íntegro e impoluto. O jovem tinha razão ao não querer um homem de bem misturado com a mexerufada mais ou menos carroceira que indispunha os colaboradores e leitores dos jornais.

Eu penso que, ao dirigir-me a vossas senhorias, não corro o risco de que venha um filho desagravar o pai, e, se vier, pois tudo é possível nestas desajustadas eras, sempre protestarei que não me refiro aos párocos honrados, cumpridores do seu mester, respeitadores da constituição e da lei, repesos das malfeitorias contra Hipácia e Galileu, leitores de romances, informados do mundo, preocupados com as suas ovelhas, horrorizados com as memórias do Santo Ofício, para resgate do qual pedem perdão à divindade todas as noites, chorando. É, na verdade, muito difícil conversar e sustentar um determinado ponto sem recorrer às generalizações, porque os contínuos ‘distinguo’ acabam por entrevar o discurso. Seja a conversa sobre taxistas, jornalistas, toureiros, advogados ou calceteiros, compreenderão que ela resulta enfraquecida se a cada passo tivermos de acrescentar: «Claro que não são todos assim, eu até conheço uns torcionários de bom coração e altíssima cultura.»
Falo, senhores curas, com tristeza e com repulsa dos párocos do século XIX que por qualquer equívoco da Biologia continuam a negrejar e a bramir em igrejas que há por aí. Cabe aos cientistas averiguar como é que organismos com 200 anos tomam conta de um espaço público que a liberdade de culto consente ao seu múnus, para o desvirtuar em exercícios de solta demagogia e propaganda política. Talvez a água benta conserve, o incenso enrije e o ar dos templos, preservado das correntes deletérias do exterior, mantenha os corpos e as almas de outrora tal como elas eram. Já não se exibem, porventura, cartas remetidas do céu, como nos bons tempos de Baltasar Gracián e, até, de Júlio Diniz, mas há que reconhecer que a decadência e a má qualidade dos correios vêm sendo notórias desde há uns anos a esta parte.

Senhores priores, eu sei como vossas mercês, com o venerando Bispo de Roma à cabeça, trovejaram tão ferinamente contra o sufrágio universal, contra a liberdade de expressão, contra a liberdade de imprensa, contra a liberdade de ensino, contra a liberdade de manifestação, contra a igualdade perante a lei, contra a liberdade de culto, contra a República, contra o 25 de Abril, contra o divórcio, contra a pílula, contra o preservativo. Trovejar até seria o menos, porque lamentavelmente chego a pressentir em alguns dos vossos colegas um ressentimentozinho por já não ser permitido queimar gente ou denunciar gente para ser queimada. Se a divindade que vossas senhorias reverenciam existisse, existência que nunca foi provada e de que eu me permito, discreta mas firmemente, duvidar, decerto que o perfil da personagem, como vem às vezes relatada, não se compaginaria com certos comportamentos e certas vozearias dos seus subordinados.

Isto, senhores padres, vem a propósito de rumores que considero fundados acerca do teor das algumas homilias em matéria de referendo, utilizando os altares para violentar a boa fé dos crentes e a liberdade das consciências. A ser verdade, e por o Ministério Público andar tão ocupado com outro tipo de manipulações, que não teve decerto tempo para, neste campo, defender os interesses da República, eu julgo-me no direito de vos relembrar os vossos deveres e as condições legais em que a prática do vosso culto é aceite.

Há, senhores curas, entre os crentes, gente absolutamente admirável, a muitos títulos, que soube merecer o respeito e a admiração dos outros cidadãos: queiram inspirar-se nela. Há quem pratique, desinteressadamente, boas obras: tenham a bondade de testemunhar, apontar e seguir esses magníficos exemplos. E, já agora, de uma vez por todas, de preferência dando mostras de arrependimento, convertam-se finalmente à democracia.”

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