sexta-feira, 2 de março de 2007

Fernando Assis Pacheco - "passou-me para os ossos e não sai"

Contou-me o meu amigo Luís, da Livraria LER ali em Campo de Ourique, ao Jardim da Parada, que o Assis Pacheco passava sempre por lá antes de ir para casa. Para ver as novidades, para dizer bem ou mal da vida, para polemizar um bocadinho antes de recolher ao conforto do lar. E foi isso que ele fez com o Sr. Luís no serão anterior ao seu coração ter decidido parar de bater, desta vez à porta de outra livraria, a Bucholz. Apesar da literatura/poesia/jornalismo do Assis Pacheco continuar a bater e muito. Mas a bater mais na cabeça do que no coração, porque este não foi um poeta lamechas, um jornalista engajado, nem um escritor inocente. Foi um intelectual do povo, um tertuliador nato, um inventor de palavras (ou antes, saboreador de palavras), um fazedor de manguitos, um lisboeta dos sete costados. Jornalou sobre tudo, de África à bola e de “O Jornal” à “Visão” e ao “Jornal de Letras”. Entrevistou tudo e todos mas sempre com a mesma intensidade, da Amália ao José Cardoso Pires e ao Toni (sim, o bigodudo que foi treinador do Glorioso), de que alguns excelentes exemplos foram reunidos em “Retratos Falados”, um livro a não perder para se perceber como se faz uma entrevista à séria. Poetizou os dramas que viveu na Guerra Colonial e homenageou o passado familiar num dos romances mais apaixonantes do Séc. XX português: “Trabalhos e Paixões de Benito Prada: Galego da Província de Ourense Que Veio a Portugal Ganhar a Vida”. Fernando Assis Pacheco, onde quer que estejas, vamos logo à noite emborcar uns traçadinhos ao Bairro Alto?

Aqui ficam os seus “Últimos Desejos”:

Quero voar como os anjos
quero lavar os dentes com
triflúor
quero o Belinho sem o
Oliveira
quero cornear o duque de
Kent

quero 250 de Platão bem
passados
quero a destreza do okapi
quero ir ao Douro às
vindimas
quero pagar com letrasset

quero vestir de linho (e do
Veiga)
quero ser primeiro no
Mundial
quero pudim francês com
caramelo
quero ler um cabinda em
verso branco

quero uma sequóia para o
quarto
quero voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel
Cerdan
quero a Maja Desnuda

quero-te de bicicleta
quero-te outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de
bicicleta
quero o som macio que
fazia na mata a tua
bicicleta.

E aqui fica uma curta biografia que não faz juz ao tamanho de uma vida que acabou precocemente:

F.A.P. - [Coimbra, 1937 - Lisboa, 1995]
Poeta, ficcionista, jornalista e crítico. Licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra, viveu nesta cidade até ir para a tropa, em 1961. Filho de pai médico e de mãe doméstica, sendo o avô materno galego, casado com uma lavradeira da Bairrada, e o avô paterno roceiro em São Tomé foi na juventude actor de teatro (TEUC e CITAC) e redactor da revista Vértice, circunstância que lhe permitiu privar de perto com o poeta neo-realista Joaquim Namorado e com poetas da sua geração, como Manuel Alegre e José Carlos de Vasconcelos. Cumpriu parte do serviço militar em Portugal entre 1961 e 1963, tendo seguido como expedicionário para Angola, onde se manteve até 1965. Integrado inicialmente num batalhão de cavalaria, viria a ser reciclado nos serviços auxiliares e colocado no Quartel-General da Região Militar de Angola. Publicou o primeiro livro em Coimbra, a expensas paternas, não obstante se encontrar, na altura, em África. Cuidar dos Vivos se intitula o livro de estreia - poemas de protesto político e cívico com afloramento dos temas da morte e do amor. Em apêndice, dois poemas sobre a guerra em Angola, que terão sido dos primeiros publicados sobre o conflito. A temática africana de guerra voltaria a impor-se em Câu Kiên: Um Resumo (1972), ainda que sob "camuflagem vietnamita", livro que conheceria em 1976 a sua versão definitiva: Katalabanza, Kiolo e Volta. Memória do Contencioso (1980) reúne "folhetos" publicados entre 1972 e 1980, e Variações em Sousa (1987) marca como que um regresso aos temas da infância e da adolescência, com Coimbra em fundo, e refinando uma veia jocosa e satírica já visível nos poemas inaugurais. A novela Walt (1978) atesta-o exuberantemente. Era notável em Assis Pacheco a sua larga cultura galega, aliás sobejamente explanada em alguns dos seus textos jornalísticos e no seu livro Trabalhos e Paixões de Benito Prada. Em A Musa Irregular (1991) reuniu o poeta toda a sua produção. Nunca conheceu outra profissão que não fosse o jornalismo: deixou a sua marca de grande repórter no Diário de Lisboa, na República e no JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias. Foi chefe de Redacção de O Jornal, semanário onde durante dez anos exerceu crítica literária. Traduziu para português obras de Pablo Neruda e Gabriel Garcia Marquez.
(Instituto Português do Livro e das Bibliotecas)

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