segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Gunther Grass - "Descascando a Cebola"


“A memória assenta em memórias que, por sua vez, vão à procura de outras memórias. Assemelha-se assim à cebola que, a cada casca que cai, põe a nú coisas há muito esquecidas, até aos dentes de leite da meninice; mas depois a faca afiada ajuda a conseguir um outro propósito: cortada, camada por camada, provoca lágrimas que turvam a vista” (p.246).

Esta citação explica como se deve ler e entender a maravilhosa autobiografia de Gunther Grass, “Descascando a Cebola”. Se os provérbios e as frases-chave podem não passar de constatações óbvias, o óbvio é por vezes aquilo que mais é difícil de entender para muita gente. Tenho por isso de começar este texto com a constatação de que é a ler que a gente se entende, sendo que a primeira poucos fazem e a segunda menos ainda. Talvez seja por isso que este obra seja meramente publicitada como aquela onde o Nobel da Literatura de 1999 revela que pertenceu às SS no final da guerra, quando tinha 16/17 anos.

Muito mais do que esse facto, ou até a recente, inútil e académica querela sobre a tradução do livro, o que fica demonstrado em “Descascando a Cebola” é precisamente a razão, mais uma vez óbvia, porque este senhor foi galardoado com o prémio máximo da literatura mundial. Porque parte de uma simples metáfora para dar ao mundo um livro onde expia os seus pecados, desejos e ambições, que são dele e só a ele pertencem. E mesmo assim ele revela-os, revelando-se assim um verdadeiro humanista do Sec. XX, na melhor tradição alemã, que caiu na mesma tentação hitleriana em que cairam 99% dos alemães.

O que fica para a história de “Descascando a Cebola”, uma biografia que se lê com a paixãod e um romance, é a total exposição do eu, com revelações tão ou mais profundas e intimistas do que o facto de ter pertencido às SS, facto que aliás fica mitigado logo desde o início do livro, tal como os moínhos de Dom Quixote são apenas um pequeno episódio no início de um livro muito maior. O que nos enternece em “Descascando a Cebola” são as referências que Grass foi recolhendo para os livros que foi escrevendo ao longo da vida. As dúvidas e certezas sexuais. Os primeiros amores. A mão que consolou muitas vezes o desejo inconsolável. As personagens que lhe marcaram a personalidade. Os pais, a mulher, os filhos e os netos. A revelação do holocausto. O vício do tabaco. A pungência da fome passada no pós-guerra, tanto a fome por comida como a fome por arte. As artes industriais aprendidas para poder chegar à arte da escrita.

Afinal o que interessa “Descascando a Cebola” é que estamos perante um fresco que nos ajuda a compreender o que foi viver na Alemanha entre 1939 e 1959. Um fresco pintado letra a letra por um escritor maior como Gunther Grass, um alemão que nasceu numa cidade (Danzig) que hoje faz parte de outro país (Gdansk), que se descasca completamente perante o leitor e dá-se a conhecer sem qualquer camada, já que a cebola é toda descascada. E as lágrimas que a cebola provoca não são do leitor, por eventualmente ficar indignado pelo autor ter pertencido às SS e ter participado activamente na guerra. Pertencem sim ao autor, por revelar memórias que ainda hoje, já com 80 anos, lhe custam amargamente revelar.

O mais curioso disto tudo é que apesar de tanta camada de cebola e tanta amargura, não consigo deixar de me sentir feliz por me ser dado a ler um livro assim de um escritor assim. Obrigado Gunther Grass. O tambor há de continuar sempre a bater.

Sem comentários:

Directory of Books Blogs Blog Directory Add to Technorati Favorites