quarta-feira, 16 de maio de 2007

Adolfo Rocha ou Miguel Torga ou Portugal

Faz 100 anos que nasceu Adolfo Rocha, entretanto falecido Miguel Torga em 1995. Independentemente de concordar ou não com a criação de efemérides para recordar determinadas personalidades, que na maioria dos casos caem no esquecimento fora delas, esta efeméride específica tenho de comemorar, porque Miguel Torga faz parte do meu imaginário literário praticamente desde que comecei a ler. Ainda hoje acho que é uma sorte para todos os estudantes terem a possibilidade (ou será que é obrigatoriedade? mesmo assim...) de ler os “Bichos” na escola - confesso que não sei se esta pérola da nossa literatura ainda faz parte dos programas curriculares de Português.

Há cerca de meia dúzia de anos, por ocasião da reedição das obras de Miguel Torga pela Dom Quixote, comprei um livro com todos os contos do autor compilados em mais de 800 páginas. (Re)li os Contos da Montanha, os Novos Contos da Montanha, os Bichos e tudo o resto em menos de um mês, com uma avidez e uma alegria extasiantes. Poucos devem ter descrito o Portugal profundo com tanta imaginação e sem cair em catalogações surrealistas, neo-realistas ou outros istas que tais.

Pessoalmente, a seguir a Pessoa, Miguel Torga devia ter sido o segundo Prémio Nobel da literatura portuguesa. Porque foi o seu próprio editor, o seu próprio crítico, o seu próprio impulsionador e o seu próprio autor. Não tivesse ele dito um dia: “nasci subversivo. A começar por mim - meu principal motivo de insatisfação”. Mas como o Nobel é cada vez mais um prémio politico e não um prémio literário ficamos assim. Mas ficamos bem, porque, pelo menos para mim, é uma honra ter a mesma pátria de tão brilhante contador de histórias, imagens e portugalidades.

Para lembrar Torga todos os dias, transcrevo um pequeno excerto do "O Terceiro Dia" da “Criação do Mundo”:

“Petrópolis apareceu daí a pouco, envolta numa penumbra perfumada de cravos. Depois começou a descida para o Rio, vagarosa, íngreme, dentro do véu espesso da noite. Até que o barracão horizontal da Leopoldina Railway, cheio de luz, pôs fim ao torpor da viagem.
A cidade, agora, tinha outra realidade. O ingénuo rapazinho que a vira em espanto e desespero à chegada do Arlanza, morrera. O carro que desta vez me levava vertiginosamente pela Avenida do Mangue, movimentava as coisas mas não as tornava siderais. No Hotel Globo, onde nos hospedámos, o porteiro agaloado, o telefone à cabeceira da cama e o pequeno-almoço servido no quarto eram trivialidades naturais. Nem a baía da Guanabara, no dia seguinte, conseguiu fazer transbordar a taça dos sentidos. A própria beleza deixara de ser uma nebulosa nos meus olhos. O informe começava a ter linhas, cores e volumes. A imensa concha azul, que grandes e pequenas ilhas salpicavam de verdura, e a teoria de montes à volta, que lembravam gigantes tornados Narcisos à beira das àguas, só como certezas físicas se prestavam aos devaneios da imaginação. O mundo pedia-me lucidez antes de cada deslumbramento. Se novamente o táxi atropelasse um pobre transeunte, e o motorista, para evitar complicações, o deixasse também ao abandono no meio da rua, eu saberia opor à desumanidade pelo menos um protesto.
Saberia isso, da mesma maneira que sabia ouvir claramente, entendendo-lhe todas as intenções, o diálogo travado na casa Soares&Companhia. Meu tio, ainda lembrado do acolhimento desdenhoso que me fora dispensado na altura do desembarque, a tirar a desforra:
- Este é aquele bichinho de toca que esteve comigo aqui à chegada de Portugal...Lembra-se? Primeiro aluno do Ginásio de Ribeirão e futuro doutor de Coimbra...
E o gerente, a fazer-se desentendido:
- Muita hora, e felicidades...
- Obrigado, e prazer, também... - respondi, com ar irónico.
Crescera por fora e por dentro. Nem a mais leve sombra da confusão de outrora. Atento à ronha dos interlocutores e aos mínimos pormenores da conversa. O numero aproximado de arrobas de café da próxima colheita, informações do deve e do haver do comprador da fazenda, as condições de pagamento da venda realizada, a crise que se aproximava., as saudades da pátria que o senhor Marques curtia Há vinte e cinco anos, a sua aldeia, a mãe que morrera de velhice no inverno passado, e o pedaço de asno dum cunhado que lhe dava cabo de meia dúzia de oliveiras que herdara...
Aprendera a objectivar a vida. Caminhava no chão. As palavras, os gestos e o próprio silêncio assumiam finalmente a crua função expressiva [...]”.

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